Você já se sentiu vivendo dentro de um episódio de Black Mirror? Pois é. A cada novo colapso climático, avanço da vigilância digital ou notícia de bilionários com sonhos interplanetários, a sensação é de que a ficção científica virou manual de sobrevivência — e não só escapismo.
A real é que talvez nunca tenhamos precisado tanto da ficção científica. E não, ela não é só sobre foguetes. Enquanto nomes como Elon Musk se dizem inspirados pelo gênero, o que vemos são projetos de poder concentrado, tecnologias que aprofundam desigualdades e uma certa obsessão com a “fuga da Terra”. Basta lembrar do episódio recente (e bizarro) das mulheres famosas indo para o espaço, passando 15 segundos por lá e voltando.
Só que a verdade é que a ficção científica boa nunca foi sobre foguetes ou carros voadores. Ela fala sobre desigualdade, poder, medo, pertencimento. Sobre o que acontece com a gente quando tudo muda rápido demais.
Apesar de já ter sido vista como passatempo de nerds, fantasia escapista ou até um gênero menor dentro da literatura e das artes, à medida que o presente se torna cada vez mais distópico — com desastres climáticos, polarização política, vigilância em massa e bilionários obcecados por foguetes — a ficção científica talvez seja uma das ferramentas mais poderosas que temos para pensar no que vem depois.
E se o sci-fi não for só sobre o futuro, mas sobre entender o agora? Sobre ética, sociedade, política e imaginação radical? Autoras como Octavia Butler, que nos anos 90 já escreviam sobre colapsos climáticos e governos autoritários, nos ajudam a pensar o presente com mais nitidez do que muita coisa por aí.
Joe Muggs, jornalista inglês, teve esse estalo ao visitar Tóquio: luzes néon, alta tecnologia… mas também máquinas de fax, cartazes escritos à mão, rituais milenares. Um colapso de tempos coexistindo. Um futuro imperfeito. E é aí que o sci-fi brilha: ao embaralhar passado, presente e futuro para provocar reflexão — e criar espaço para novos imaginários. É justamente essa colisão que torna a ficção científica mais necessária do que nunca: ela não só imagina o amanhã, mas expande o agora e ressignifica o passado.
Sonhar não é bobagem. Um exemplo? O solarpunk, uma vertente da ficção que propõe futuros sustentáveis, possíveis e colaborativos. Gente imaginando o amanhã não como espetáculo, mas como continuidade. Parece utopia? Pode ser. Mas eu prefiro apostar nisso do que viver achando que o apocalipse é inevitável. A gente se acostumou a acreditar que o futuro vai ser sombrio — e talvez por isso ele esteja mesmo ficando assim. Mudar o imaginário é o primeiro passo pra mudar qualquer coisa.
Portanto, imaginar é resistir. Como disse Ursula K. Le Guin: “Imaginar é perigoso para quem lucra com o mundo como ele é.” Talvez seja justamente por isso que a gente deva imaginar mais.
Tem dias em que tudo parece ruído: informação demais, problema demais, futuro de menos. Nesses dias, às vezes o que salva é um bom livro sci-fi, uma música com som de espaço sideral ou uma conversa com alguém que ainda acredita em imaginação.
Acho que, no fundo, o que a ficção científica faz de melhor é nos lembrar de que o mundo não precisa ser exatamente como está. Que outras formas de viver, pensar e existir são possíveis. E só isso já é revolucionário o suficiente.
Mais do que nunca, precisamos cultivar a alfabetização especulativa — a capacidade de imaginar mundos novos. Não por escapismo, mas por necessidade.