EYN -#208

E se a próxima estrela da gastronomia for um prompt bem escrito?

E se a próxima estrela da gastronomia for um prompt bem escrito?

Um chef chamado Jill vai estrear em breve no restaurante Next, em Chicago. Aos 33 anos, nascida no Wisconsin, passou pelas mãos de Ferran Adrià, Jiro Ono e Auguste Escoffier. A combinação de referências é ousada — a desconstrução catalã, a precisão japonesa, o classicismo francês — e o prato que ela propõe é igualmente inusitado: sorvete de crème fraîche com infusão de caviar servido numa casca de batata ultrafina em formato de ovo. Soa como alta gastronomia do futuro.

E é. Jill não existe. Foi criada por Grant Achatz (o chef por trás do Alinea e do próprio Next) em uma conversa com o ChatGPT. Ele inventou seu passado, seu paladar e sua trajetória. E deixou a IA propor os pratos. Seu currículo brilhante é ainda mais impressionante quando se lembra que Escoffier está morto desde 1935.

Jill é só uma das “chefes imaginárias” do novo menu do Next, que terá nove pratos assinados por nove personagens fictícios, todos gerados com ajuda da inteligência artificial. Nenhum deles vai cozinhar — claro —, mas a IA, segundo Achatz, será responsável por tudo até o momento em que a comida chega à panela: conceito, composição, referências, storytelling.

A provocação é clara: se a criatividade humana se alimenta de repertório, por que não colaborar com uma inteligência que consegue varrer séculos de cozinha e culturas em segundos?

IA como coautora da criatividade

O uso da IA na gastronomia não é mais só para controlar estoque ou agendar turnos. Alguns chefs estão usando ferramentas como o ChatGPT ou o Midjourney para criar pratos, conceber louças, imaginar atmosferas e investigar técnicas.

  • Jenner Tomaska, do restaurante Esmé, pediu que a IA sugerisse recheios de uma variação de barbajuan que unisse a tradição francesa de Alain Ducasse, o terroir do meio-oeste americano e a identidade de uma steakhouse. O resultado? Lagostim, missô branco, endro fresco e raiz de aipo em conserva.
  • Ned Baldwin, do Houseman em Nova York, usou o ChatGPT como tutor técnico para entender a química por trás da textura de suas salsichas. Ajudou com proporções de amido, propriedades da miocina e o papel da transglutaminase — assunto que muitos chefs evitam, por vaidade ou receio de parecerem amadores.
  • Dave Beran, ao projetar o restaurante Seline em Santa Monica, usou a IA para traduzir sensações em imagens. Alimentou o Midjourney com comandos que iam de “um restaurante que te convida a se enrolar ao lado de uma lareira” até combinações inspiradas em Frantzén e Aska. A IA não deu a resposta final, mas atuou como ponte de linguagem com sua arquiteta.

Colaboração ou atalho?

Claro que nem todo mundo está a bordo. Dominique Crenn, uma das grandes vozes da cozinha contemporânea, afirma que não vê espaço para máquinas em seus processos criativos. “Cozinhar é, acima de tudo, uma experiência humana”, escreveu. E ela tem razão — até certo ponto.

Porque, como mostra a matéria do New York Times, o uso da IA na gastronomia não está substituindo o humano, mas complementando, desafiando, tensionando. Às vezes, sugerindo um ingrediente improvável. Outras, propondo uma nova forma de servir. Em alguns casos, apenas gerando uma imagem visual que inspira o design de uma tigela ou de um ambiente.

A IA é, nesse contexto, menos uma ameaça e mais uma presença fantasmagórica: um sparring, um editor sem ego, uma entidade que não dorme e que nunca te julga, mesmo que você pergunte como fazer linguiça sem ressecar ou queira saber o que o Escoffier pensaria do seu risoto de beterraba com carvão ativado.

É claro que o uso sem filtro ou crítica pode gerar pratos fracos, confusos ou apenas aleatórios. Mas sejamos honestos: quantas ideias humanas também não são assim?

A entrada da IA no universo da gastronomia é só mais um sintoma de uma era em que a criatividade deixa de ser exclusivamente humana — e passa a ser uma espécie de cocriação com máquinas, algoritmos e bancos de dados.

E isso está acontecendo em todas as áreas: da moda à literatura, do urbanismo à publicidade. A diferença é que, na gastronomia, a experiência ainda é — e talvez sempre será — sensorial, coletiva, imperfeita e profundamente humana.

Mas ter um “ghost chef” no processo criativo pode ser o tempero que faltava para sair do lugar-comum.👉 Leia aqui a matéria completa do NYT

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