Você quer perder alguns quilos? As dietas estão ultrapassadas; você está em uma jornada de perda de peso. Quer entrar em forma? Essa é uma jornada de condicionamento físico. Está esperando um bebê? Bem-vinda à sua jornada de gravidez. Está em tratamento contra o câncer? Sim, essa também é uma jornada.
O pra se aprofundar de hoje é uma aventura linguística ao colocarmos uma lupa no uso da palavra ‘journey’ (ou ‘jornada’, em português) e como seu uso passou a permear o nosso discurso cotidiano de forma quase onipresente – principalmente, nos EUA. Vamos desvendar como essa palavra transcende seu significado literal para se tornar uma metáfora poderosa, capaz de expressar as experiências individuais ao longo do tempo e que, para alguns, tal excesso de uso, tanto na cultura popular quanto no discurso privado, fez com que perdesse seu significado e sentido.
Ah, essa discussão é inspirada em uma recente matéria do NYT, que pode ser lida na íntegra para quem desejar se aprofundar ainda mais.
Bom, o que exatamente essa palavra e seu uso significam?
Antes usada, principalmente, para descrever viagens literais, agora, ‘journey’ é frequentemente empregada como uma metáfora para diversas experiências pessoais. Segundo o professor de linguística Jesse Egbert, da Northern Arizona University, o uso da palavra como substantivo quase dobrou no inglês americano, desde 1990, com os casos mais comuns ocorrendo online e, ao analisar um novo banco de dados de conversação em inglês americano, Egbert identificou uma mudança no tipo de palavras que acompanham “journey” para esclarecer o tipo de experiência. Entre 1990 e 2005, o modificador mais comum era “return” (retorno), seguido por palavras como “ocean” (oceano), “train” (trem) e “mile” (milha). Porém, entre 2006 e 2019, o uso mudou, com palavras como “faith” (fé), “cancer” (câncer) e “life” (vida) se tornando mais comuns. Essa evolução reflete a ampliação do escopo de significados associados à palavra “journey” na cultura contemporânea.
Em várias línguas, “jornada” se tornou uma forma abstrata de falar sobre resultados, uma ideia enraizada na “teoria da metáfora primária”, que sugere que desde a infância, quando nos rastejamos em direção aos brinquedos, propósito e destino já estão interligados. Mesmo enquanto alcançamos nossos objetivos sem sair do lugar, continuamos a conceber o sucesso como avanço. Isso se reflete em expressões como “eu sei o que quero, mas não sei como chegar lá” ou “estou em uma encruzilhada”. Não surpreendentemente, à medida que os americanos valorizam uma vida saudável alcançável por meio de suas escolhas, as palavras “jornada” e “saúde” se tornaram inseparáveis.
A cultura da autoajuda permeia tão intensamente a sociedade que, como observou Jessica Lamb-Shapiro, autora de “Promise Land: My Journey Through America’s Self-Help Culture”, torna-se difícil rastrear a origem de certas palavras. Os americanos tendem a adicionar um tom otimista e corajoso ao enfrentar o sofrimento, e a palavra “journey” se tornou popular porque, especulou Lamb-Shapiro, é suficientemente suave para abordar assuntos difíceis, mas ao mesmo tempo positiva o suficiente para torná-los mais aceitáveis. Essa tendência se estendeu ao discurso médico na década de 2010, com muitos pacientes de câncer resistindo à linguagem de “batalha” tradicionalmente utilizada pelos médicos, amigos e familiares. No entanto, alguns pacientes acham que “jornada” trivializa a experiência do câncer, expressando exaustão e sensação de passividade diante da doença.
Apesar disso, a palavra já estava em todo lugar. No mundo da moda, em 2014, Anna Wintour foi questionada sobre qual palavra ela baniria do léxico da moda, e sua resposta foi “jornada”. Revistas médicas e publicações governamentais passaram a descrever uma variedade de experiências como uma jornada, desde insônia até esforços de reforma do sistema de saúde e desenvolvimento de vacinas. O termo “jornada de cura”, já em uso desde meados da década de 2010, tornou-se ainda mais proeminente em 2021, sendo associado a uma variedade de experiências, desde câncer até perda de peso de celebridades e até mesmo questões como tráfico de crianças indígenas e processo criativo de celebridades. Oi? Sim, uma mistura louca… e, aparentemente, todos nos Estados Unidos estão em uma jornada.
Além disso, não é incomum ver empresas embarcando nessa jornada (kkk). Afinal, como organizações compostas por pessoas, elas prontamente adotam essa palavra para seus próprios fins. E por que não? Ao simplesmente adicionar “jornada” ao conteúdo do site corporativo ou integrá-lo abundantemente na declaração de missão, qualquer atividade realizada pela empresa subitamente adquire uma aura altruísta, quase religiosa.
Muitos alegam que tudo começou em 1986, quando o programa de Oprah Winfrey foi ao ar pela primeira vez… mas o fato é que é ilusório usar essa palavra ao passar por qualquer experiência, momento, crise etc…é preciso lidar com a realidade e as emoções do que você está sentindo, sejam elas positivas ou negativas, ao invés de assumir que isso é uma jornada.
Enfim, obrigada por fazer parte de minha jornada…