No final de semana passado, assisti “Poor Things” e fiquei muito impressionada com a atuação de Emma Stone, que foi merecidamente agraciada com o Oscar de melhor atriz este ano. Dirigido por Yorgos Lanthimos e escrito por Tony McNamara, o filme é realmente peculiar, com múltiplas camadas intrigantes, uma espécie de sonho febril, uma história de amadurecimento vista através de uma lente distorcida. No dia seguinte em que o assisti, ainda impactada pela cena que Bella come com as mãos, observei minha filha também o fazer, explorando as diferentes texturas dos alimentos – esmagando daqui, pegando dali. Refleti sobre o ato de comer com as mãos, o que me levou a realizar algumas pesquisas sobre o tema, e a escrever sobre essa prática considerada por muitos como algo ‘primata’, mas que no fundo é fascinante.
Não sei se você já experienciou ir a um restaurante japonês onde o chef pede que você leve cada pedaço de nigiri a boca apenas com os dedos? Isso porque o arroz sob o peixe é tão delicadamente pressionado que pode se desmanchar com a pressão do hashi. Além de ter toda uma técnica para colocar o peixe em contato com a língua e não o arroz, o que fica mais fácil de fazer com a mão do que com os palitinhos.
E tenho que confessar que só neste ato, sentimos a textura, temperatura e, consequentemente, o sabor de maneira mais intensa.
Ao longo da história, comer com as mãos sempre foi uma parte fundamental da experiência humana. Isso não apenas refletia a simplicidade dos tempos antigos, mas também destacava a conexão direta entre o indivíduo e sua comida. Na verdade, comer com as mãos era visto como uma forma mais íntima e sensorial de desfrutar a comida. Segundo Charles Spence, professor de Psicologia Experimental em Astrophysics, comer é uma experiência muito mais multissensorial do que normalmente reconhecemos.
Ele menciona que vários fatores contribuem para a forma como comemos e interagimos com os alimentos, afetando essa experiência multissensorial – a cultura, as convenções, a natureza do alimento em si, bem como as qualidades da estimulação tátil e proprioceptiva, além de nossa familiaridade com elas. Sua pesquisa mostrou que todos esses elementos desempenham um papel importante e explicam por que o mesmo alimento pode ter um sabor diferente para diferentes pessoas e por que a experiência de comer pode ser mais ou menos agradável, dependendo de como interagimos com o alimento. E foi constatado que aumentar o contato tátil direto com os alimentos parece melhorar, de fato, a experiência de comer e beber.
Spence propõe uma “nova ciência da alimentação” para observar sistematicamente as maneiras pelas quais nosso comportamento em relação à comida é afetado por todos os nossos sentidos, bem como por fatores como o ambiente e até mesmo os talheres. Por exemplo, descobriu-se que, para a maioria das pessoas, as refeições são mais saborosas quando servidas com facas e garfos pesados e caros, ou sem nenhum talher – ele cita pesquisas que sugerem que comer com as mãos melhora a sensação do alimento na boca.
Em partes da África, do Sul e do Sudeste Asiático e do Oriente Médio, comer com as mãos é tradição há muito tempo e esse ato sempre desempenhou um papel importante na formação da identidade cultural dos povos. As técnicas e etiquetas associadas ao comer com as mãos foram transmitidas de geração em geração, tornando-se parte integrante das tradições culinárias locais. Por exemplo, na Índia, o uso das mãos para comer é considerado uma habilidade refinada e é acompanhado por uma série de práticas e rituais específicos.
No entanto, no Ocidente, apenas determinados alimentos e cenários estão isentos de talheres: o conhecido “finger food” oferecido durante os coquetéis – mordidas feitas para serem levadas à boca com o mínimo de gotejamento e derramamento – e no nível mais casual, hambúrgueres e asinhas de frango, pratos que marcam uma pausa momentânea das boas maneiras à mesa, com sucos escorrendo pelos dedos. Essas categorias são tão claramente demarcadas que, nos Estados Unidos, por exemplo, pode ser considerado inadequado usar ou não talheres.
Pode-se então observar que comer com as mãos não é algo livre de regras – elas existem. Há variações entre as culturas, mas em geral: lavar as mãos antes das refeições, mesmo que já estejam limpas, como sinal de respeito aos outros à mesa; usar somente a mão direita e apenas três dedos – o médio, o indicador e o polegar – somente as duas articulações superiores de cada um – com o polegar empurrando o alimento para a boca. Alguns ainda alertam para o fato de que não se deve segurar o alimento na palma da mão ou lamber qualquer parte da mão. Quando muito, os dedos devem tocar apenas os lábios.
Bom, os talheres podem ter triunfado e ganhado a cena em parte, porque simplesmente tornaram o ato de comer mais fácil para alguns alimentos. Como relata o historiador italiano, Massimo Montanari, em “A Short History of Spaghetti With Tomato Sauce” (2019), na Europa: os italianos foram os primeiros a adotar o garfo, cujos dentes se mostraram úteis para enrolar o macarrão (introduzido no sul da Itália pelos árabes que governaram a Sicília a partir do século IX) – um desenvolvimento semelhante aos hashis que ganharam domínio sobre as colheres na China por volta do século I d.C.
Enfim, a experiência de assistir “Poor Things” desencadeou uma reflexão profunda sobre os aspectos sensoriais e culturais do ato de comer com as mãos. Como pontua Roland Barthes, tal prática transforma a experiência alimentar, tornando-a uma transferência harmoniosa em vez de um ato de conquista. Assim, ao explorar as nuances do comer com as mãos, descobrimos não apenas uma forma de nutrição, mas uma expressão vívida da nossa relação com a comida e com o mundo ao nosso redor.