146

A fascinante jornada do mergulho livre

Milhares de aventureiros já escalaram o majestoso Monte Everest, mas apenas algumas dezenas desafiaram as profundezas do oceano, mergulhando livremente a 100 metros abaixo da superfície. A água, embora essencial para a vida, evoca instintos primordiais de medo em muitos de nós, especialmente quando nos vemos obrigados a prender a respiração. Enquanto um bicho-preguiça pode permanecer submerso por até 40 minutos sem respirar, a capacidade média de um ser humano nesse ambiente é limitada a meros 60 segundos. 

Essa semana me peguei lendo um artigo do Financial Time sobre a famosa Y-40, localizada na Itália, mais precisamente na cidade termal de Montegrotto Terme, a aproximadamente 40 quilômetros a oeste de Veneza. Se você não sabe, a Y-40 é a piscina termal mais profunda do mundo e oferece uma mistura surreal de arte, atletismo e serenidade. O fato é que o país, com seus mares quentes e seu longo litoral, tem sido um ponto de encontro para o mergulho livre desde então. Curiosa que sou, resolvi me aprofundar no tema e me deparei com boas surpresas. 

Mergulhadores livres mergulham na água com uma única respiração, sem nada além de roupa de mergulho, máscara e nadadeiras (ou, às vezes, sem nada). Eles também costumam ir bem fundo. Atualmente, o recorde mundial feminino de mergulho livre com “peso constante” – que envolve mergulhar usando apenas nadadeiras ou um monofin, em vez de cordas ou pesos – é de Alessia Zecchini, que mergulhou 123 metros, o equivalente a 40 andares, prendendo a respiração por 3 minutos e 51 segundos. Insano, né? 

A prática provavelmente existe desde que os seres humanos são capazes de nadar. Há referências de mergulhadores livres sendo pagos para abrir caminho para navios no relato de Tucídides, em 431 a.C., sobre a Guerra do Peloponeso, enquanto os primeiros registros de mergulho com pérolas no Japão datam de pelo menos 2.000 anos. No entanto, foi somente na segunda metade do século XX que as pessoas começaram a fazer isso por diversão ou por esporte. Haggi Statti, possivelmente o primeiro a mergulhar em uma profundidade considerável, localizou a âncora perdida de um navio da marinha italiana a 76 metros debaixo d’água perto de Creta, em 1913. Apesar do ceticismo inicial, seu feito inspirou outros. Em 1962, Enzo Maiorca mergulhou a 51 metros e, mais tarde, Jacques Mayol chegou a 100 metros, usando técnicas inovadoras. Essas conquistas, imortalizadas no filme “The Big Blue”, deram início a uma nova era de mergulho livre.

Apesar de permanecer como uma atividade nichada por muitos anos, sua ênfase no trabalho de respiração, em acalmar a mente e em ouvir o corpo parece combinar com os entusiasmos do século XXI, e a disciplina está desfrutando um aumento em sua popularidade. Conforme destacado pela própria Alessia, o esporte oferece não apenas desafios físicos, mas também profundas recompensas mentais. 

Antes da pandemia, as certificações de mergulhadores livres estavam aumentando constantemente em 5% ao ano”, diz Julie Andersen, diretora de marca global da Padi, a Associação Profissional de Instrutores de Mergulho, que credencia a grande maioria dos mergulhadores recreativos de mergulho autônomo e livre em todo o mundo. “Mas, nos últimos quatro anos, vimos um salto significativo na demanda. As pessoas não querem apenas se conectar com o oceano, mas também com elas mesmas.”

Francesco Corucci, que dirige a escola de mergulho livre Deep Instinct na Toscana, diz que também notou uma mudança nos tipos de pessoas que praticam o esporte. “Costumava ser muito dominado por homens, uma disciplina que atraía principalmente pescadores de arpão”, diz ele. “Agora, há muitas pessoas que não pescam e muito mais mulheres. Nossos cursos estão divididos entre 50% e 50%.” 

Também ajuda o fato do esporte ser incrivelmente ‘fotogênico’, fator que Andersen também credita ao aumento de seu apelo. “Houve um aumento de imagens impressionantes graças às mídias sociais e a vários documentários”, diz ela. Talvez o mais impactante deles seja The Deepest Breath (De Tirar o Fôlego), lançado na Netflix no verão passado, protagonizado por Zecchini. *ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS MAIS PARA BAIXO.

A própria campeã mundial italiana também notou seu impacto –  “depois do filme, muitas pessoas me escreveram dizendo que começaram a experimentar o mergulho livre“. Embora ela seja claramente uma figura inspiradora, The Deepest Breath não é uma propaganda inquestionável do esporte. Com foco no relacionamento entre ela e Stephen Keenan, seu treinador, o filme é repleto de belas paisagens subaquáticas, filmadas em locais tropicais que fazem parte do circuito profissional. Mas não se esquiva de mostrar o lado mais sombrio do esporte que, no final, culmina com a morte de Keenan, que sacrificou sua própria segurança para salvar Zecchini durante um mergulho difícil que deu errado. É um incidente sobre o qual ela ainda acha difícil falar, seis anos depois.

“Quando você começa a mergulhar, a única coisa que você precisa fazer é estar presente. Você não quer pensar em mais nada naquele momento “, aconselha ela. 

“O mergulho livre não é apenas um esporte, é uma forma de entender quem somos. Quando caímos, se não pensarmos, entendemos que somos inteiros. Somos um com o mundo. Quando pensamos, somos separados. Na superfície, é natural pensar e temos muitas informações em nosso interior. Às vezes, precisamos nos reiniciar. O mergulho livre ajuda a fazer isso” disse uma vez Natalia Molchanova, mergulhadora livre russa que detinha vários recordes mundiais no esporte e que desapareceu tragicamente durante um mergulho de treinamento na Espanha. 

Em muitos esportes, pessoas com 30 anos de idade estão chegando ao fim de suas carreiras. Aqui é diferente. Os mergulhadores não precisam apenas de força, flexibilidade e capacidade extraordinária de manter a respiração, mas também de calma, maturidade e autoconhecimento. Se eles tentarem demais, muito cedo, é provável que se esgotem – ou pior.

A piscina que estava falando no começo oferece a fusão de arte e ambiente aquático, além de ser um local muito procurado para filmagens e empreendimentos criativos. A gênese do Y-40 remonta a um sonho visionário de Emanuele Boaretto, um estudante de arquitetura e ávido mergulhador. Inspirado pelas fontes termais naturais de Montegrotto, Emanuele imaginou um oásis subterrâneo onde os mergulhadores poderiam explorar as profundezas durante todo o ano. Apesar de décadas de dormência, o sonho de Emanuele se materializou em 2013, quando a escavação começou ao lado do Hotel Millepini Terme da família.

Hoje, o Y-40 é um testemunho da inovação e da proeza da engenharia. Suas vastas dimensões, com capacidade para 4,3 milhões de litros de água, oferecem amplo espaço para exploração e recreação. O nome da piscina, “Y-40”, faz alusão à sua profundidade impressionante, atingindo 42,15 metros em seu ponto mais baixo. Características notáveis, como a passarela subaquática suspensa feita de resina de metacrilato especializada, contribuem para o fascínio da Y-40 como um destino de mergulho de primeira linha.

Enfim, fiquei ainda mais curiosa e impressionada com este universo. Para concluir, trago uma frase de Jacques Mayol, que resume bem tudo isso: “o mergulho livre tem a ver com o silêncio… o silêncio que vem de dentro”. 

Direitos reservados Eat Your Nuts