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A morte (ou metamorfose) do intelectual público

Em fevereiro de 1965, James Baldwin e William F. Buckley Jr. se enfrentaram em um debate histórico na Universidade de Cambridge. O tema, se o sonho americano havia sido construído às custas da população negra, transcendeu as paredes do auditório e reverberou em rádios, jornais e salas de aula. Baldwin venceu de forma esmagadora, mas o que ficou para a história não foi apenas o placar, e sim o lembrete de que havia, naquele tempo, figuras capazes de mobilizar sociedades inteiras por meio das ideias. Eram os intelectuais públicos, homens e mulheres que assumiam o papel de tradutores do pensamento, levando questões filosóficas, políticas e culturais ao grande público.

O ensaio The Death of the Public Intellectual: is Hailey Bieber the new Susan Sontag? (The Digital Meadow, abril/2025) parte desse episódio para lançar uma pergunta incômoda: quem ocupa hoje esse lugar de influência? A resposta não aponta para novos Baldwins ou Sontags, mas para uma transformação profunda do ecossistema cultural. A internet dissolveu fronteiras, a academia se trancou em especializações inacessíveis, e o palco antes reservado ao confronto de ideias foi tomado por algoritmos, estéticas virais e personalidades que moldam desejos mais do que reflexões.

Hailey Bieber, com seus batons “brownie” ou cabelos “cinnamon cookie butter”, dita tendências com a mesma força simbólica que Sontag tinha ao publicar um ensaio sobre arte e cultura. Kim Kardashian, ao arquitetar um ideal estético global, impactou mais gerações do que muitas teóricas feministas do período recente. A diferença, como lembra o texto, não é de potência, mas de natureza: substituímos o espaço da argumentação pelo espaço da imagem, o esforço da reflexão pela sedução da estética. O que antes exigia silêncio, leitura e debate, hoje é absorvido pelo scroll automático.

A pergunta que fica e que deveria nos provocar, é se essa transição representa uma perda trágica ou apenas a evolução natural das formas de influência. Talvez seja ingênuo imaginar que, em um mundo saturado de estímulos, ainda seria possível repetir os “momentos Baldwin”: auditórios lotados em atenção reverente. Mas talvez também seja perigoso aceitar sem crítica que nossa cultura agora se organiza em torno da pele mais luminosa, do lifestyle mais aspiracional ou do vídeo mais compartilhável. Se a disputa simbólica que define o que valorizamos se deslocou para a estética, não estaremos perdendo a capacidade de confrontar ideias?

O The Digital Meadow sugere que o intelectual público não desapareceu, apenas perdeu espaço de visibilidade. Há quem continue produzindo reflexão crítica em podcasts, newsletters, fóruns digitais ou mesmo em conversas menores, locais, quase subterrâneas. O desafio é reconhecer que esses espaços não carregam mais o mesmo poder cultural massivo, mas ainda podem ser o terreno fértil para ideias profundas. O risco maior não é que intelectuais tenham se tornado irrelevantes, mas que nós, como sociedade, tenhamos renunciado à expectativa de que figuras públicas nos provoquem intelectualmente.

Talvez a morte do intelectual público não seja um fim, mas uma metamorfose. Se antes eles moldavam a cultura a partir do discurso, hoje precisam disputar atenção com imagens, estéticas e narrativas instantâneas. Cabe a nós decidir se aceitamos a lógica da superfície ou se insistimos em criar e sustentar espaços onde a reflexão ainda tenha lugar. Porque, como lembra o próprio ensaio, nenhuma conversa está encerrada. O perigo não está na repetição das ideias, mas no silêncio que as substitui.

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