Existe algo perturbador acontecendo em nossas telas. Um fenômeno que transcende a simples busca por informação e se transforma em algo mais sombrio: o voyeurismo de crise. É uma nova forma de consumo de conteúdo onde tragédias reais são transformadas em entretenimento digital, onde o sofrimento alheio vira commodity social.
Os últimos dois anos têm sido um doloroso lembrete de como os desastres naturais estão se tornando não apenas mais frequentes e devastadores, mas também mais íntimos e imediatos em nossas vidas digitais. Em 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores tragédias climáticas de sua história, com enchentes e alagamentos que afetaram mais de 2,3 milhões de pessoas, resultando em pelo menos 183 mortes e deixando 88 desaparecidos. No mesmo ano, a Austrália enfrentou incêndios florestais de grandes proporções, resultando em destruição de habitats naturais e evacuações em massa. E como não mencionar as enchentes no litoral norte de São Paulo?
Enquanto acompanho em tempo real os incêndios que devastam Los Angeles, não posso deixar de refletir sobre como nossa relação com desastres mudou drasticamente na última década. As imagens dos imóveis queimando circulam lado a lado com correntes de WhatsApp organizando doações, numa dança entre devastação e esperança que se tornaria familiar nos meses seguintes.
Acontece que não estamos mais apenas nos informando sobre desastres – estamos os consumindo como espetáculo. O TikTok se transformou no epicentro dessa nova forma de consumo de tragédias. Na plataforma, a fronteira entre informação e entretenimento é cada vez mais tênue, sendo o palco perfeito para essa transformação do trágico em viral.
Como curadora de conteúdo digital há mais de uma década, tenho me perguntado constantemente sobre o que significa essa transformação. Não é apenas uma questão de como compartilhamos informações – é sobre como processamos coletivamente o trauma na era digital.
O processo é quase mecânico em sua previsibilidade: um evento traumático ocorre e, em questões de minutos, a máquina digital já está em movimento. O raw footage da tragédia é processado, editado e re-empacotado, ganhando músicas de fundo, textos sobrepostos e efeitos visuais. A realidade crua é rapidamente moldada para se encaixar nos formatos preferidos das redes sociais.
O fenômeno que observo agora em LA é especialmente perturbador. Creators fazendo “Get Ready With Me para Evacuar Minha Casa”, músicas virais embalando imagens de destruição, reviews de produtos de emergência na TikTok Shop. O absurdo se tornou cotidiano, e o cotidiano se tornou conteúdo. A desigualdade social ganha novos filtros, mas permanece igualmente cruel.
O ciclo é sempre o mesmo, ainda que cada vez mais acelerado. Primeiro, vem o pânico digital: lives descontextualizadas, teorias conspiratórias, compartilhamento caótico de informações. Em seguida, surge a mobilização: grupos de ajuda mútua se organizam, hashtags são sistematizadas, fact-checking colaborativo emerge. Por fim, inevitavelmente, chega a espetacularização: memes como válvula de escape, monetização da experiência, tentativas desajeitadas de brand activism.
Essa transformação tem um custo social profundo. À medida que consumimos essas tragédias como conteúdo casual entre um reel de dança e uma receita viral, nossa capacidade de empatia genuína vai sendo gradualmente erodida. O sofrimento humano se torna apenas mais um produto na nossa dieta infinita de conteúdo digital, algo para ser curtido, compartilhado e esquecido no próximo scroll.
Mais preocupante ainda é como esse sistema se retroalimenta. O engajamento gera monetização, a monetização incentiva mais produção de conteúdo similar, e assim criamos um mercado onde a tragédia alheia se torna um ativo digital valioso. O valor do engajamento frequentemente supera o valor da dignidade humana. Onde a métrica do sucesso não é a conscientização ou a mobilização para ajuda, mas sim o número de visualizações e compartilhamentos.
Mas seria injusto dizer que é tudo negativo. As mesmas plataformas que banalizam o sofrimento também catalisam uma mobilização sem precedentes. Das campanhas de arrecadação recordes no Instagram aos grupos de resgate coordenados via redes sociais, vemos uma eficiência que muitas vezes supera a das instituições tradicionais.
É essa dualidade que torna nosso momento histórico tão complexo de analisar. As redes sociais são simultaneamente nosso melhor e pior impulso amplificado: nossa capacidade de ajudar e nossa tendência à espetacularização, nossa empatia e nosso voyeurismo, nossa força coletiva e nossa fragilidade individual.
Como criadora de conteúdo, aprendi que não existem respostas simples. Cada novo desastre traz consigo não apenas destruição física, mas também uma onda de transformação digital que precisamos aprender a navegar. Por trás de cada trend, cada meme, cada vídeo viral, existe uma história humana que merece ser contada – e ouvida – com respeito e sensibilidade.
Enquanto os incêndios em LA continuam, e inevitavelmente novos desastres surgirão, sigo documentando essa evolução em nossa forma de processar tragédias. Porque talvez, ao entender melhor como lidamos com o caos através das telas, possamos encontrar maneiras mais humanas de nos conectar e apoiar uns aos outros em momentos de crise.