O tema da edição de hoje foi inspirado por um talk de que participei no começo da semana, mais especificamente pela frase ‘minha filha se recusa a escrever’… pois bem, te pergunto, quando foi a última vez que você escreveu algo à mão?
Não estou falando de um bilhete no post-it ou de uma anotação solta na agenda.
Pedir a alguém que assine um documento pode parecer um gesto banal — mas hoje, esse pequeno ato é um espelho de uma transformação silenciosa (e profunda) na nossa relação com a linguagem. Em vez de escrever, digitamos. Em vez de rabiscar ideias no papel, deslizamos os dedos por uma tela. E, nesse processo, estamos perdendo muito mais do que a prática da caligrafia: estamos deixando para trás uma das tecnologias mais antigas e mais humanas que já criamos.
Escrever à mão nunca foi só uma questão de estética. É memória muscular, processamento cognitivo, expressão emocional, cultura material. É história.
A verdade é que o teclado (e a touchscreen) substituiu papel e caneta de forma quase invisível. Escolas deixaram de ensinar letra cursiva. Médicos fazem anotações em prontuários eletrônicos (felizmente — receitas ilegíveis já causaram mortes). Cada vez mais gente escreve apenas com os polegares. E não é exagero: cerca de 40% da Geração Z tem dificuldade com a escrita básica. Na China, o termo tibiwangzi, “pega a caneta, esquece o caractere” descreve bem essa nova realidade: jovens que, diante do papel, simplesmente não sabem mais o que fazer com ele.
Mas o que está em jogo vai muito além da caligrafia. Em 2014, os psicólogos Pam Mueller e Daniel Oppenheimer publicaram um estudo que virou referência: alunos que escreviam suas anotações à mão lembravam mais do conteúdo e se saíam melhor em testes conceituais do que os que digitavam. A explicação? Escrever à mão exige síntese. O papel nos obriga a pensar antes de registrar. Já o teclado estimula a transcrição automática, quase sem reflexão. Ou seja, o que parece mais eficiente pode estar sabotando a forma como aprendemos.
Paralelo, a escrita manual ativa regiões do cérebro ligadas à memória, compreensão e criatividade. A escrita manual lenta, imperfeita e cheia de traços pessoais nos ensina a organizar ideias, refletir e, em última instância, pensar melhor.
Há também o lado sensorial: o som da caneta deslizando, o tato do papel, o traço imperfeito que carrega emoção. Não é à toa que seguimos recorrendo à escrita manual em momentos significativos: cartas de amor, bilhetes de despedida, convites especiais. É impossível negar que ler um manuscrito de alguém que viveu há 100 ou 300 anos é como tocar um vestígio vivo. A caligrafia revela a urgência, o cuidado. Um trecho borrado pela pressa. Uma folha marcada pelo tempo.
Escrever à mão é também uma forma de deixar rastro.
Claro, vivemos num mundo obcecado por produtividade. Digitar é mais rápido, mais limpo, mais compartilhável. Mas será que a eficiência justifica o abandono de uma prática tão rica? Será que não estamos trocando uma habilidade profundamente humana por uma conveniência descartável?
O que perdemos quando perdemos a escrita à mão? Perdemos cognição, conexão, memória, identidade. E, ao que tudo indica, ainda não sabemos a real extensão dessa perda.