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Pior que não terminar uma viagem, é nunca partir? 

Enquanto algumas pessoas não se veem dormindo fora do seu próprio quarto, seja pelo conforto ou familiaridade com o ambiente; são amantes de rotina; e a ideia de viver de modo mais livre e espontâneo não lhe parecem assim tão convidativa, outras, são desgarradas de todos esses conceitos e adoram se expor ao diferente.

É esse é o caso dos nômades – pessoas que chamam o mundo de lar, a estrada de melhor amiga e sempre dão boas-vindas às novas experiências e desafios da vida. Embora incompreendidos por uns e tidos como “loucos” por outros, os nômades defendem que há sentido e muitos benefícios de optar por esse estilo de vida caracterizado por constantes mudanças e despedidas. 

Se você assistiu ao filme Nomadland – uma baita produção que levou o Oscar de Melhor Filme em 2021 – já deve estar mais a par da sensibilidade do assunto, mas caso não, lá vai (sem perigo de spoilers): Fern, a protagonista, na casa dos seus 60 anos, é demitida do trabalho que se dedicou por anos, em seguida assiste o marido definhar por meses a fio em uma cama de hospital até sua morte e agora, sozinha, se vê desprovida financeiramente, após perder tudo na Grande Recessão. Ela decide então adaptar sua van – uma de suas poucas posses – para transformá-la em algo próximo de um lar, a fim de embarcar em uma viagem pelo Oeste americano e viver como uma nômade moderna. 

É interessante que quando questionada se havia ficado sem teto, de modo sóbrio, Fern responde: “I’m not homeless, I’m houseless”. Ou seja, embora esse conceitos possam se embaralhar em nossa mente e até soar como sinônimos, eles não estão nem perto de significar a mesma coisa – e é importante entendermos isso. 

Tá, mas a verdade é que outro ponto me chamou atenção enquanto eu mergulhava sobre o assunto: o fato de muitas pessoas criticarem e até esnobarem pessoas que são nômades, atribuindo a elas, de forma pejorativa, títulos como “irresponsáveis”; “não comprometidas” e até “desatarefadas”, comportamento esse que não é lá uma grande surpresa, não é? 

Ao menos, minha conclusão foi essa: é óbvio que em uma sociedade que presta culto ao apego material; o cumprimento da lista de ‘to do’s’ acima da saúde mental e do descanso; e a produtividade a todo custo, vai desvalidar qualquer alternativa que fuja dessa receita padrão. E, em especial, os nômades, que vão na contramão daquela filosofia de “você é o que você tem” que torna o outro uma régua de comparação (ou espelho, tanto faz, a ideia é a mesma)  daquilo que te falta – seja dinheiro, glamour, beleza, posses, etc. 

Inclusive, desmistificando o que muita gente pensa, é preciso, na verdade, um ótimo senso de organização e responsabilidade para viver como nômade, afinal, lidar com exigências constantes de trabalho e dinheiro e aprender a administrar tudo isso, pode ocasionar no desenvolvimento de problemas como ansiedade e depressão, embora, por outro lado, é claro, os ganhos pessoais são muitos, já que conviver com outras culturas, idiomas e pessoas possibilita novos horizontes e formas de ver a vida, além de nos moldar como seres humanos. 

Inclusive, pós pandemia, não é incomum nos deparamos com um crescimento exponencial de nômades digitais que resolveram mergulhar no desconhecido com essas promessas em mente. Segundo o Relatório Global de Tendências Migratórias 2022 da Fragomen, empresa global especializada em migração, estima-se que até 2035 existam cerca de 1 bilhão de nômades digitais. Ah, e se você está visualizando uma pessoa segurando um notebook, dentro de um motorhome, no meio de um camping, procurando por sinal pra trabalhar, não poderia estar mais errado. 

Mas por quê? Ora, existem vários outros cenários que configuram o “ser nômade digital”. Uma pessoa sem moradia fixa, que trabalha com projetos freelancer e vai mudando de Airbnb de tempos em tempos  pelo mundão afora, por exemplo, pode ser considerada um.

De todo modo, pra mim, mediante esse aprofundamento no assunto, o “nomadismo”, definitivamente, me despertou curiosidade e ganhou um novo significado: o da coragem, pois é como o navegador e escritor brasileiro, Amyr Klink, a primeira pessoa a fazer a travessia do Atlântico Sul a remo, em 1984, escreveu: “Pior que não terminar uma viagem é nunca partir.”

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