Cópia de EYN - Pra se aprofundar 2025

Quando tudo é performance: o que o rótulo “performático” revela sobre nós?

Nos últimos anos, poucas palavras ganharam tanto peso (e ironia) quanto “performático”. Ela aparece em tweets, comentários, manchetes, quase sempre como acusação: “Fulano é tão performático”, “Isso é pura performance”. O termo, antes restrito ao vocabulário das artes e da filosofia, virou rótulo popular para descrever aquilo que parece exagerado, calculado, ou falso. Mas por que ser “performático” virou ofensa, e o que isso diz sobre a cultura contemporânea?

O artigo do Nexo Jornal levanta uma questão essencial: a performance, hoje, está em tudo. Vivemos em um ambiente onde a visibilidade é a nova moeda e onde todo gesto, do post indignado à selfie chorando, é potencialmente público. O resultado é um paradoxo curioso: todos performamos, mas ninguém quer parecer performático.

A era do “parecer autêntico”

A ideia de performance social não é nova. Em 1956, o sociólogo Erving Goffman escreveu que a vida cotidiana é como um teatro: nos apresentamos diante dos outros, controlando o que mostramos e o que escondemos. Décadas depois, Judith Butler ampliou o conceito ao discutir como o gênero também é uma performance: repetimos gestos e papéis até que pareçam “naturais”.

O que muda agora é o palco. As redes sociais transformaram cada um de nós em curador e público ao mesmo tempo. Só que nesse teatro digital, a autenticidade se tornou performance. É preciso parecer espontâneo, parecer vulnerável, parecer honesto. O “parecer” é parte inevitável do jogo — e é justamente ele que o termo “performático” tenta denunciar.

Chamar alguém de performático é, quase sempre, uma forma de deslegitimar sua expressão. Quando uma mulher chora em rede nacional, quando um influenciador fala sobre política, quando uma marca se posiciona, o público responde: “isso é só performance”. A palavra, então, opera como mecanismo de controle simbólico. Ela acusa o outro de manipular emoções ou capitalizar causas, enquanto o próprio acusador se coloca num lugar de suposta lucidez, “imune” à encenação. Mas há ironia aí: criticar o performático também é uma performance, a do cético cool, que vê por trás do espetáculo e preserva sua autenticidade intacta.

Na cultura das redes, o corpo se tornou o principal meio de expressão, e também o mais vigiado. Postar, editar, se expor ou se preservar são decisões políticas e estéticas. Quem pode performar a vulnerabilidade sem ser punido? Quem é chamado de falso, exagerado, histérico?

O rótulo “performático” raramente é neutro. Ele reflete marcadores de gênero, raça e classe. Corpos femininos e racializados, por exemplo, são mais frequentemente acusados de encenação, enquanto certos corpos brancos e masculinos são lidos como “autênticos”, mesmo quando calculam cada gesto. A performance, nesse sentido, não é apenas um ato: é um campo de disputa por legitimidade.

O que resta fora da performance?

Talvez a pergunta mais incômoda seja: existe algo fora da performance? Se tudo o que fazemos é atravessado por mediações, contextos e olhares — até o gesto mais íntimo é, de algum modo, encenado. A busca por “autenticidade pura” talvez seja o mito fundador da cultura digital, e o rótulo “performático” funciona como espelho invertido desse mito. No fim, o que chamamos de performance pode ser justamente o que revela nossas contradições: o desejo de ser visto e, ao mesmo tempo, de parecer natural; de pertencer, mas manter o controle da própria narrativa.

Talvez o caminho não seja negar a performance, mas reivindicá-la conscientemente. Entender que encenar também é uma forma de existir, comunicar, resistir. Que o gesto calculado pode ser tão legítimo quanto o espontâneo. Que toda expressão, mesmo a mais honesta, é uma tentativa de construir sentido e, portanto, uma performance.

No fundo, talvez o problema não esteja em performar, mas em fingir que não o fazemos.

Direitos reservados Eat Your Nuts