Já imaginou treinar para aceitar sua própria morte? Não? Pois é, nem eu, mas é exatamente isso que prevê o Shugendō, uma forma de budismo originária do Japão, construída por diversos elementos sincréticos de inúmeras tradições religiosas, como o xintoísmo, o taoísmo e até crenças animistas pré-budistas.
Seus praticantes, os ‘yamabushi’, são conhecidos por trajarem vestes brancas – tradicionalmente usadas para vestir os mortos no Japão, e carregarem um bastão de madeira que se assemelha aos paus usados para marcar túmulos em cemitérios, enquanto caminham silenciosamente pelos picos de Dewa Sanzan – Monte Haguro, Monte Gassan e Monte Yudono, conhecidas como ‘montanhas de renascimento’, ao norte do país.
Durante a caminhada, o único som constante são dos sinos yamabushi e dos passos dos peregrinos. Não autorizados a falar durante o ritual de vários dias, o “transe” meditativo é quebrado apenas por instruções do guia, sendo a resposta autorizada apenas uma: “Uketamo”, que significa “eu aceito”.
Dá pra imaginar? Horas de escalada, cansaço batendo, nuances de temperatura e vento, quando o guia, enfim, fala:
‘Agora vamos escalar o Monte Gassan’. Uketamo…
‘Agora vamos nos lavar no rio’. Uketamo…
‘Agora vamos atravessar a noite’. Uketamo… E assim repetidamente! Eu aceito, eu aceito, eu aceito.
Tá, mas como isso tem a ver com a morte? Bom, dado que as montanhas são tidas como “montanhas do renascimento”, segue a lógica: para renascer, antes é preciso passar pela morte simbólica nos treinamentos que acontecem lá, depois, é necessário aceitar a situação, sua posição e o seu “eu atual” em todas as etapas da jornada – por isso é tão importante repetir continuamente “Uketamo”, pois aqui, a morte é aceita como uma realidade material, não mais uma ideia.
Se você parar pra pensar, o Shugendō é como uma forma prática do estoicismo que cabe muito bem no mundo moderno – de um lado com o pensamento racional e de outro no aprendizado com a natureza, as montanhas e a prática em si. Por ser uma tradição religiosa e filosófica, é como se fosse uma versão de aceitação mais incorporada, visceral e ainda atrelada ao meio ambiente.
De qualquer maneira, o que tiro de aprendizado é a importância de abraçar as circunstâncias que a vida nos imputa no decorrer do caminho e a necessidade de suportá-las em prol de um objetivo maior… E o mais louco? Sem reclamar! Sem falar que o treinamento Shugendō também é uma prática de viver o momento, através das caminhadas e subidas silenciosas que servem como um baita exercício de meditação, afinal, é impossível não estar no momento presente quando se está caminhando em uma montanha sinuosa, onde um passo errado pode ser fatal.
Outro ponto que chamou minha atenção e vale o destaque é que: ao se disporem a enfrentar um dos maiores medos e incertezas de grande parte da humanidade – a morte – os yamabuchi vão além. Isso os lança fora da zona de conforto, os colocando (e a nós também) contra a parede com a pergunta: qual foi a última vez que enfrentamos nossos medos? Ou pelo menos, de termos aqueles conceitos e ideias que firmamos tão fortemente dentro de nós por pura comodidade, questionados?
Eles reforçam o quanto é preciso coragem para lidar com as questões mais internas e profundas, tanto sobre nós, como sobre a vida…
Aliás, curioso para saber quem são esses ascetas? Em geral, homens japoneses e algumas mulheres – CEOs e aposentados – que se juntam por razões distintas, mas ao mesmo tempo semelhantes: a busca por um caminho diferente pelo mundo contemporâneo.
Ufa, me empenhei, mas a verdade é que o Shugendō não é algo tão fácil assim de explicar, os próprios yamabushi juram não compartilhar o que acontece por lá…. O que fica na montanha, permanece na montanha, afinal, pra eles, o período lá representa o próprio tempo em que ainda estavam no útero. Os editores do livro Defining Shugendō (2020) descrevem a tradição como “tão intrincada, complexa e diversificada que seria absurdo fingir cobrir todos os aspectos dela em um único volume”.
Mas e aí, quem toparia o desafio?